Gente, aqui vão duas crônicas de que gostei muito.
Uma, oferecendo conclusões sobre a violenta reação dos conservadores nos EUA ao movimento de uma cidadã que retende cobertura dos planos de saúde para a compra de anticoncepcionais. A coisa foi para em cartas de Barack Obama pedindo desculpas ao governo afegão por crimes cometidos pelo exército dos EUA. Uma frase me tocou muito (“O difícil é se desculpar por algo que ocorreu quando você está no comando” ... “O truque é pedir desculpas por algo que o país fez quando você não estava no comando da nação.” Me fez lembrar da atitude (para mim hipócrita, demagógica e eleitoreira0 de o governo (ou o Estado?) brasileiro formular a uma nação africana (por que não a outras?) pelo regime escravocrata de há mais de trezentos anos...
A outra, sobre a forma como o regime atual se perpetua na Rússia, isso depois de deixarmos para trás (menos naquela luxuriante ilha tropical) comunismo, esquerdas-versus-direitas e queda-do-muro-de-Berlim...
Espero que gostem.
PS
SEXO, GUERRAS E CONTRIÇÃO
Dorrit Harazim
O GLOBO, 20.03.2012
“A América vive numa espécie de nova era das trevas, em que a sociedade se orgulha de sua ignorância”, observou recentemente o californiano Marty Klein, autor do livro “Guerra ao Sexo”, a um entrevistador britânico. Klein se referia ao vitriólico debate em torno do planejamento familiar, que há meses injeta um tom quase medieval à campanha eleitoral nos Estados Unidos. O embate mais recente colocou em campos opostos dois protagonistas inesperados e marginais à corrida presidencial.
Sandra Fluke é uma estudante de Direito da Universidade de Georgetown. Metodista de fé e democrata por opção política, a jovem de 30 anos há tempos milita a favor de um planejamento familiar acessível a todos. Semanas atrás, testemunhou perante uma comissão parlamentar do Congresso em defesa de uma instrução do governo Obama para que os planos de saúde cubram pílulas anticoncepcionais. Rush Limbaugh é o radialista mais popular do país, cujo programa de três horas diárias tem uma audiência média de 15 milhões de pessoas. Comparado a Limbaugh, o apresentador paulista José Luiz Datena tem verve poética e vocação para coroinha.
Limbaugh, que costuma acertar na veia obscurantista de seus seguidores, desta vez errou a mão. “O que devemos deduzir da universitária que defendeu no Congresso o custeio de anticoncepcionais pelos planos de saúde?”, tonitruou o radialista numa quarta-feira. “Basicamente, ela diz que merece ser reembolsada para fazer sexo. Isso faz dela o quê? Uma vadia, certo? Uma prostituta. Ela quer que você, eu e o contribuinte paguemos para ela fazer sexo. Isso nos torna o quê? Proxenetas...” No dia seguinte, empolgado com a polêmica que criou, pisou mais fundo, seguindo seu princípio de “atrair a maior audiência possível e mantê-la cativa pelo maior tempo possível para cobrar a tabela publicitária mais alta possível”: “O mulherio parece que entrou em órbita! E olhem que eu nem indaguei se lésbicas precisam usar camisinha. Então lá vai uma para a senhorita Fluke e o resto das feminazistas: se tivermos de pagar para suas camisinhas e para vocês fazerem sexo, queremos algo em troca: que vocês postem os vídeos on-line para podermos assistir.”
Na sexta-feira, em meio a nova estocada (“Por que ela não encontra algum homem que banque as suas camisinhas?”), quatro anunciantes, de um total de nove, acharam prudente boicotar o programa. O presidente Barack Obama aproveitou para fazer gol. Telefonou da Casa Branca para a jovem de franjinha bem comportada e discurso sóbrio, e lhe disse, entre outros, que o Sr. e a Sra. Fluke deveriam estar orgulhosos da filha. Só então o plantel de pré-candidatos republicanos saiu de um silêncio sepulcral. “Não são termos que eu usaria”, declarou o mórmon Mitt Romney, que por enquanto lidera a corrida. Rick Santorum, o fervoroso puritano de quem Romney não consegue se desvencilhar, não decepcionou. Queixo erguido, peito mais estufado pelas recentes vitórias parciais, desconversou: “Profissionais de entretenimento podem dizer absurdos”, disse apenas.
Sua posição a respeito de anticoncepcionais é clara, embora a construção verbal por vezes seja oblíqua: “Eles (os Anticoncepcionais) permitem fazer coisas no âmbito da sexualidade contrárias a como as coisas deveriam ser.” O problema é que, segundo a mais recente pesquisa do Instituto Guttmacher, de Washington, 99% mulheres americanas sexualmente ativas (e 98% das católicas) já usaram algum método contraceptivo.
Só no sábado Limbaugh avaliou melhor o estrago. “Peço desculpas sinceras à Senhorita Fluke pela escolha de palavras insultuosas”, disse o radialista, que está em seu quarto casamento e teve um lote irregular de Viagra interceptado pela alfândega dos EUA quando retornava de uma viagem à República Dominicana. Por insinceras, não foram aceitas pela jovem e rapidamente esquecidas pelos seguidores do apresentador.
A atual fase de toxicidade da vida política e social americana revelou-se em dois outros pedidos de desculpa recentes — ambos feitos pelo atual ocupante da Casa Branca. O primeiro foi por carta endereçada ao presidente afegão Hamid Karzai, na qual Obama se desculpa pela queima acidental de exemplares do Alcorão. A profanação fora praticada por soldados americanos da base de Bagram, ao norte da capital Kabul, e sepultou de vez o que restava de confiança afegã.
Santorum logo taxou Obama de chorão, e qualificou o gesto de fraqueza desprezível. “Pedir desculpas por algo não intencional é algo que um presidente dos EUA nunca deveria fazer”, condenou. “Em breve será criado o Ministério das Desculpas, para dar conta de tantos pedidos de perdão.” Newt Gingrich considerou a carta um ultraje. E Mitt Romney não ficou atrás. “Esse pedido de desculpas está atravessado na garganta do povo americano”, disse o ex-governador de Massachusetts. Romney condena a política externa de Obama há tempos e não foi por acaso que o livro escrito por ele para a campanha eleitoral tem por título “Sem pedido de desculpas”.
No domingo, 11 de março, Obama teve de pedir desculpas novamente a Karzai. Por telefone, logo que foi informado da chacina de 16 civis afegãos praticada por um sargento americano. O militar teria saído à noite de sua base em Kandahar e assassinado metodicamente famílias inteiras de casa em casa.
“O difícil é se desculpar por algo que ocorreu quando você está no comando”, sustenta o pesquisador Stephen Hess, do Brookings Institute. “O truque é pedir desculpas por algo que o país fez quando você não estava no comando da nação.” Obama pode ter se mexido por um misto de princípios e pragmatismo. Afinal, a superposição de papéis (candidato à reeleição e comandante em chefe das Forças Armadas) nem sempre é harmônica. Mas para seus eleitores ele terá honrado a citação de James Monroe, 5º presidente a ocupar a Casa Branca (entre 1817 e 1825), que consta de todo livro escolar americano: “A honra nacional é a propriedade mais valiosa da nação.”
Uma cena ocorrida num dia gelado de dezembro de 1970 vem à memória. O então chanceler alemão Willy Brandt empreendia a histórica visita de reconciliação de seu país com os vizinhos do Leste europeu. Ao depositar flores no memorial aos insurgentes do Gueto de Varsóvia, na capital da Polônia, inesperadamente caiu de joelhos no asfalto sujo e molhado do local e assim permaneceu durante longos minutos. Explicou mais tarde que se ajoelhara em nome da Alemanha e precisou pedir perdão. A foto correu mundo como “Der Kniefall”, genuflexão, na tradução literal. Um ano depois Brandt recebeu o Prêmio Nobel da Paz.
DORRIT HARAZIM é jornalista.
A PRIMAVERA RUSSA
Daniel Aarão Reis
O Globo, 20.03.2012
Os resultados das recentes eleições realizadas na Rússia confirmaram a força de Vladimir Putin e do partido com ele identificado, o Rússia Unida. Putin elegeu-se duas vezes, em 2000 e 2004. Em 2008, indicou um fiel amigo, D. Medvedev, também eleito. Depois, fez aprovar uma emenda constitucional, ampliando o mandato presidencial de quatro para seis anos. E elegeu-se agora. Como tem direito à reeleição, poderá ficar no poder, em tese, até 2024. Enquanto isto, o Rússia Unida, fundado em 2001, foi o mais votado nas eleições de fins do ano passado.
Então, continua tudo como dantes no quartel d’Abrantes? Nem tudo. Como gostava de dizer o Barão de Itararé, há “algo no ar além dos aviões de carreira”. Uma análise acurada dos últimos resultados evidencia alguns sinais inquietantes para os homens do poder.
Desde os anos 1990, quase um terço dos eleitores não comparece, evidenciando desinteresse ou contrariedade. Por outro lado, as votações de Putin estão crescendo como rabo de cavalo: para baixo. Proporcionalmente, ele registrou bons resultados, sem dúvida: em 2000, 52,9% dos votos, e 71,3% em 2004. Quatro anos depois, fez o sucessor com 70,3%. E agora, em 2012, cravou 63%. Mas as proporções podem enganar. Se o foco desloca-se para uma análise quantitativa, em 2004 Putin ganhou 49,5 milhões de votos. Agora, apesar do crescimento do eleitorado (mais 2 milhões), ele teve 45,6 milhões de sufrágios num total de quase 110 milhões de votantes, cerca de 40% do eleitorado. Como se não bastasse, nas eleições parlamentares de dezembro do ano passado, o Rússia Unida não chegou a 50% dos votos válidos. Ora, como pouco menos de 60% de eleitores inscritos foram às urnas, o partido, de fato, não teve nem um terço dos votos: 32,3 milhões de sufrágios num total de quase 110 milhões de votantes.
Mais importante do que os frios dados é observar como as eleições de dezembro, denunciadas como fraudulentas, suscitaram exaltados protestos. Logo depois de proclamados os resultados, dezenas de milhares de pessoas saíram às ruas exigindo um novo pleito. Inspirando-se nos movimentos dos indignados europeus e dos ocupantes de Wall Street, questionam não apenas Putin, mas o conjunto da ordem política.
Em Moscou e São Petersburgo surgiram promissores movimentos sociais apoiados por ONGs, como Golos (Voz), Vibori (Opção) e Gradjanski Control (Controle Cidadão); por formações políticas alternativas, como a Frente de Esquerda, liderada por Serguei Udaltsov e por internautas, jornalistas e blogueiros, como Alexei Navalny, além de inúmeros artistas alternativos — escritores, bandas de música, performers e teatrólogos.
O governo sentiu o golpe e propôs reformas significativas: o restabelecimento de eleições diretas para os governos provinciais, abolidas em 2004, a obrigação de o Parlamento discutir propostas assinadas por mais de cem mil cidadãos, a diminuição drástica das restrições para o registro de partidos políticos e candidatos. Para evidenciar a preocupação em controlar novas fraudes, Putin ordenou a instalação de duas câmeras de filmar em cada uma das cerca de 90 mil seções eleitorais espalhadas pelo país.
Não bastou. Segundo os observadores internacionais e as ONGs que monitoraram o processo, a votação desenrolou-se corretamente, mas o mesmo não se pode dizer da contagem dos votos e das tabulações. Em um terço de seções eleitorais, foram registradas manipulações e fraudes, como o chamado "voto carrossel" (pessoas que votam em diferentes lugares). Por outro lado, ao longo da campanha eleitoral, houve consenso entre os observadores quanto ao uso e abuso das agências estatais e da mídia, estatal e privada, a favor de V. Putin, sem falar nas dificuldades quase insuperáveis de fiscalizar o pleito em regiões como o Cáucaso, onde se mantêm proporções soviéticas — quase 100% — de comparecimento às urnas e votações favoráveis aos candidatos oficiais.
Resultado: novas passeatas, não obstante a violenta ação policial e centenas de detenções. Os organizadores dos protestos convocam agora uma grande manifestação para o 1º de Maio próximo, antes da posse de Putin, no sentido de manter a pressão social e política sobre o governo.
Uma primavera russa?
As dificuldades não serão pequenas. Durante anos, Putin encarnou a redescoberta do orgulho russo, a prosperidade econômica, a estabilidade política e a segurança, mesmo que à custa do silenciamento, quando não da repressão, de todo o tipo de oposição. Não à-toa dispõe ainda de importantes apoios, traduzidos em votações e manifestações públicas que também têm se realizado.
Quando aos movimentos de protesto, precisam urgentemente formular programas positivos e alternativos para ganharem credibilidade e se tornarem atores efetivos do jogo político. Ainda é cedo para formular prognósticos sobre a vitalidade da primavera russa. Mas ela já é uma realidade e mais vale acompanhar suas lutas do que se curvar aos batidos estereótipos, frutos da preguiça intelectual, de que os russos são sempre passivos e apáticos. A verdade é que se evidenciou uma faixa importante da sociedade que não mais pretende submeter-se às astúcias e artimanhas do poder nem escolher candidatos, como disse uma desencantada eleitora, como quem escolhe um banheiro menos sujo numa estação lotada.
DANIEL AARÃO REIS é professor de História Contemporânea da UFF. E-mail: aaraoreis.daniel@gmail.com